Nosso modelo de consumo está falido: é possível construir um novo modelo. Imaginar uma solução melhor é a chave para um bom futuro.
Ali El Idrissi*
Primeira parte do artigo publicado no site GEDAF.
Em 2 de agosto de 2017, começamos a usar mais da natureza do que o nosso planeta pode renovar em todo o ano. Todos os recursos naturais que utilizamos a partir desse dia resultaram em “gastos ecológicos excessivos”.
Pense nisso como sua conta bancária. Nos primeiros 7 meses do ano, você viveu com seu salário regular. Depois disso, você começou a usar sua poupança e aumentou a dívida do seu cartão de crédito.
Atualmente, a humanidade vive endividada no crediário e consome recursos iguais a 1,7 planeta por ano . Esse valor pode ser comparado a 1,4 há uma década e 0,8 em 1963. Se as tendências da população e do consumo continuam crescendo, esse número aumentará para 2 planetas até 2030. Isso nos coloca – e nossos filhos – em caminho insustentável.
A crise climática está inserida em nossa cultura consumista
O gasto ecológico excessivo contribui para o aquecimento do nosso planeta, o qual acelerou nos últimos 35 anos – 2016 foi o ano mais quente desde o começo do registro. A maioria dos cientistas concorda que a principal causa do aquecimento é a poluição humana.
A queima de combustíveis fósseis e o desmatamento das florestas são os principais contribuintes do aquecimento global. A energia limpa e a proteção das nossas florestas são partes críticas da solução. Mas nós devemos olhar para o desafio de maneira mais holística. A crise climática está enraizada no nosso estilo de vida moderno e no modelo econômico que o sustenta.
Um estudo recente no Journal of Industrial Ecology analisou o impacto do consumo. Calculou que, em 2007, os consumidores contribuíram com mais de 60% das emissões de gases do efeito estufa. Também contribuíram entre 50% e 80% do total de uso de terra, materiais e água. As residências norte-americanas contribuíram para um quarto das emissões globais. Apenas 20% foram emissões diretas a partir do uso de transporte público e combustível doméstico. A maior parte foram as emissões indiretas provenientes do consumo de produtos e serviços. Estes incluem habitação, transporte, alimentos, produtos manufaturados e roupas.
Para apreciar o quanto isso se relaciona com o estilo de vida, considere, por exemplo, a comida. À medida que a renda aumenta, as pessoas consomem mais produtos lácteos e de carne . Estas são as categorias de alimentos com a maior pegada ambiental . Na verdade, a indústria global de carne produz mais emissões do que todos os carros, aviões, trens e navios combinados. Estudo da Universidade de Oxford calculou que a mudança global para a dieta vegana reduziria a emissão de alimentos em 70% até 2050.
A imagem é similar para o uso de recursos como a água. Em 2025, dois terços da população mundial podem enfrentar a escassez de água. O bife é a segunda carne mais popular nos EUA. É também um dos alimentos mais intensivos em água (produzir 0,5 kg de carne bovina requer 1.800 litros de água).
Vestuário é outro reflexo do nosso estilo de vida destruindo o ambiente. Nas últimas décadas, a indústria da moda alimentou nosso apetite por roupas baratas e continuou aumentando a produção. O mundo atual consome 400% mais roupas do que nas duas décadas. De acordo com o Banco Mundial, o processamento têxtil causa 20% da poluição da água global. O algodão, a “colheita sedenta”, compõe cerca de metade das nossas roupas e são necessários cerca de 20 mil litros de água para produzir 1 kg de algodão. Isso pode ter impactos devastadores como ocorreu na desertificação do mar de Aral.
À medida que consumimos também geramos muito desperdício. Especialmente resíduos plásticos, os quais representam cerca de metade de todos os resíduos humanos. Apenas 9% de todos os resíduos de plástico produzidos desde a década de 1950 foram reciclados. O resto acaba em aterros ou polui nosso ambiente. A Fundação Ellen MacArthur avalia que, até 2050, os oceanos conterão mais plástico do que o peixe.
A questão é: grande parte do problema está enraizada no tecido do nosso estilo de vida, escolhas e hábitos diários. Não é apenas o carro que dirigimos, o alimento que comemos ou as roupas que usamos. As mudanças necessárias, desde a adoção de novas dietas até a ruptura de hábitos de compra e uso de descartáveis, vão além dos produtos que escolhemos. Precisamos redesenhar nossos comportamentos refletindo porque e como consumimos.
Precisamos de coisas consumidas, queimadas, desgastadas
Somos todos consumidores. Em certo sentido, sempre fomos, satisfazendo as nossas necessidades humanas e desejos. Mas o consumo modificou-se após a segunda revolução industrial. Desde então, tornou-se o centro do nosso estilo de vida moderno. Hoje, o consumo representa 70% do PIB norte-americano. A família típica norte-americana acumula, em média, dividas superiores a US$ 8.000 em cartões de crédito.
O surgimento do consumismo começou no início do século 20, em contexto particular. A energia dos combustíveis fósseis tornou-se abundante e barata. O modelo de produção da linha de montagem, adotado pela primeira vez na indústria automotiva, começou a se disseminar. A produção e o uso de produtos petroquímicos, por sua vez, expandiram. Combinados, esses desenvolvimentos resultaram em aumento substancial da nossa capacidade de produção.
Isso levou ao problema de superprodução com muitos produtos perseguindo muito poucos compradores. As empresas precisavam de mercado com maior número de consumidores. Isso foi analisado pelo historiador Stuart Ewen em Captains of Consciousness (Capitães da Consciência) (1976):
“Consumismo, a participação ampla nos valores do mercado de massa industrial […] surgiu na década de 1920 não como progressão suave de padrões de consumo anteriores e ‘menos desenvolvidos’, mas sim como dispositivo agressivo de sobrevivência corporativa”.
Em consequência, anúncios publicitários e de consumo foram desenvolvidos como ferramentas muito eficazes para criar novos consumidores. Na década de 1950, o consumismo era parte essencial do modo de vida norte-americano. Em 1955, o economista Victor Lebow escreveu no Journal of Retailing:
“Nossa economia extremamente produtiva exige que façamos do consumo nosso modo de vida, que convertamos a compra e uso de bens em rituais, que busquemos nossas satisfações espirituais, nossas satisfações de ego, no consumo. A medida do status social, da aceitação social, do prestígio, pode ser atualmente encontrada em nossos padrões de consumo (…) Precisamos de coisas consumidas, queimadas, desgastadas, substituídas e descartadas em ritmo cada vez maior.”
O excesso, a poluição e os resíduos estão agora em toda parte. O número de objetos na casa americana média triplicou desde 1950. Ela contém 300 mil itens e mais de US$ 3.100 em bens não utilizados. E ainda, 1 em cada 10 norte-americanos faz o armazenamento externo, um dos segmentos de crescimento mais rápido do setor imobiliário comercial.
Sessenta por cento de todas as roupas terminam em incineradores ou aterros sanitários dentro de um ano. Somente 3,1% das crianças do mundo vivem na América, mas elas possuem 40% dos brinquedos consumidos globalmente. Quase 40% dos alimentos na América vão para o lixo. Todos os anos, os norte-americanos jogam fora 32 quilos de roupa por pessoa (equivalente a mais de 200 camisetas masculinas).
Algo tem que mudar: a ética do consumismo
As empresas precisam manter a oferta de produtos novos e baratos. Elas procuram maneiras de aumentar o volume e a velocidade da produção, enquanto diminuem os custos. Isso muitas vezes significa usar material e mão-de-obra baratas. O Global Slavery Index estima que 46 milhões de pessoas estão sob alguma forma de escravidão. Muitos ganham salários muito baixos para produzir bens de consumo destinados aos mercados ocidentais.
Varejistas de grandes dimensões adotaram esse modelo agressivamente nas últimas três décadas. Em 1900, a casa típica nos EUA gastava 15% de sua renda em roupas. Em 1950, ainda estava próximo de 12%, mas em 2010 o gasto foi inferior a 3%. Isso ocorreu devido as marcas continuarem empurrando os preços e os custos para baixo. Para fazer isso, elas transferiram a produção para países com salários mais baixos, menor regulamentação e proteção dos trabalhadores. Enquanto em 1960 quase todas as roupas compradas nos EUA eram fabricadas no próprio país, hoje equivalem a menos de 2%.
Durante décadas, as coleções de roupas foram produzidas duas vezes por ano. Agora, as marcas de moda rápida lançam novas coleções a cada duas semanas. Essa programação ultra-rápida governa cadeias de abastecimento vastas, ocultas e fragmentadas. Isso incentiva a violação dos direitos humanos, condições de trabalho precárias e inseguras.
Exemplo trágico aconteceu em 24 de abril de 2013. Mais de 1.130 pessoas foram mortas e 2.500 feridas quando a fábrica da Rana Plaza entrou em colapso em Dhaka, Bangladesh.
(*) Ali é o fundador e CEO da UpChoose PBC, startup cuja missão é incentivar o papel dos consumidores na transição para um futuro sustentável. Saiba mais em www.upchoose.com
Fonte: Our Consumption Model Is Broken. Here’s How To Build A New One. Imagining a better consumption model is key to a good future.
Tradução livre do inglês pelo Organizador GEDAF. Referências em inglês, mantidas conforme o padrão de publicação do artigo original.
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